quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Lota de Macedo Soares

Lembro-me bem de minha roupa cor de vinho
E pérola e do guarda-chuva
Que também tinha cor de sangue
Aguardando tua chegada sob a chuva

Meu peito sem rédea era socado por pedras
À simples pronúncia do teu nome
Um jardim morto
Era o que havia então
Onde fui bela e forte e tu eras amada

Lembro-me bem do meu pranto de meretriz
Dos escândalos que fiz e do consolo infeliz
Que tu me davas com aquela maldita frase
De Oscar Wilde:
"Os corações existem para serem despedaçados"


Iracema Macedo

MACEDO, Iracema. Poemas inéditos e outros escolhidos. Natal: Sebo Vermelho, 2010, p. 34.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Noturno recifense

Passou ao largo o vendedor de flores.
- Estou sozinho.
Logo aqui onde outrora os belos destinos
floresciam.

Nem me notou o vendedor de flores.
- Estou sozinho.

Sabedor que a noite não é de pássaros erradios
nem me olhou o vendedor de flores.

Vindo de céus olvidados pousou um anjo.
Por ele e por mim passou, sem nos ligar,
o vendedor de flores -
que o nosso jardim não carece delas.

Benito Barros

BARROS, Benito. Cemitério de pipas. Macau: ICEC, 1998, p. 109.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Aboio

Aboio
Caetano Veloso



Urbe imensa
Pense o que é e será e foi
Pensa no boi
Enigmática máscara boi
Tem piedade

Megacidade
Conta teus meninos
Canta com teus sinos
A felicidade intensa
Que se perde e encontra em ti
Luz dilui-se
E adensa-se

Pensa-te

© Uns Produções Artísticas Ltda

Beira-mar

Beira-Mar
letra e música - Zé Ramalho


Eu entendo a noite como um oceano
Que banha de sombras o mundo de sol
Aurora que luta por um arrebol
De cores vibrantes e ar soberano
Um olho que mira nunca o engano
Durante o instante que vou contemplar
Além, muito além, onde quero chegar
Caindo a noite me lanço no mundo
Além do limite do vale profundo
Que sempre começa na beira do mar

Por dentro das águas há quadros e sonhos
E coisas que sonham o mundo dos vivos
Peixes milagrosos, insetos nocivos
Paisagens abertas, desertos medonhos
Léguas cansativas, caminhos tristonhos
Que fazem o homem se desenganar
Há peixes que lutam para se salvar
Daqueles que caçam em mar revoltoso
Outros que devoram com gênio assombroso
As vidas que caem na beira do mar

Até que a morte eu sinta chegando
Prossigo cantando, beijando o espaço
Além do cabelo que desembaraço
Invoco as águas a vir inundando
Pessoas e coisas que vão arrastando
Do meu pensamento já podem lavar
No peixe de asas eu quero voar
Sair do oceano de tez poluída
Cantar um galope fechando a ferida
Que só cicatriza na beira-do-mar

© EMI Songs do Brasil Edições Musicais Ltda.


Ficha técnica da faixa
violão e voz: Zé Ramalho

ROTHKO

domingo, 7 de novembro de 2010

Lírica espanhola

ROSA DE MELANCOLIA

Era eu noutro tempo um pastor de estrelas,
e a vida era como luminoso canto.
Um símbolo eram as coisas mais belas
para mim: a rosa, a menina, o acanto.

E era a harmoniosa voz do mundo, u'a
onda azul que rompe na praia de ouro,
cantando o oculto poderio da lua
sobre os destinos do humano coro.

Dava-me Epicuro suas ânforas cheias,
um fauno me dava sua agreste alegria,
um pastor da Arcádia, mel de suas colmeias.

Mas até o sonho navegando um dia,
escutei distante canto de sereias
e adoeceu minha alma de Melancolia.

Ramón María del Valle-Inclán

Tradução: Fábio Aristimunho Vargas

IN: VARGAS, Fábio A (Org.). Poesia espanhola. Das origens à guerra civil. São Paulo: Hedra, 2009, p. 96.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

leminskiana

Esta vida de eremita
é, às vezes, bem vazia.
Às vezes, tem visita.
Às vezes, apenas esfria.

Paulo Leminski

LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 70.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Cais
Milton Nascimento
Composição: Milton Nascimento/Ronaldo Bastos

Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar

sábado, 11 de setembro de 2010

Se me olham

Por que quase tudo perdi,
tornei-me sem adereços.
Nada existe que me tire
de mim mesma.
Nem mesmo esses cadáveres
de plástico em seus simulacros
de alabastro.
Se me olham, não me alcançam.
Nem ouvem o que minha alma diz:
Não quero mais o que jamais quis.

Marize Castro

IN: CASTRO, Marize. Lábios-espelhos. Natal: Una, 2009, p. 37.

apanhado

de certos ritmos
quase em segredo
como que a roçar
uma como que pele da alma
e a desmatar de onde

inflexões de onde
de onde dos quintais
de onde dos porões
da umidade de onde
do silêncio de onde
da noite e breu

de onde e o que mais
se a tanto
pequena percussão
pelo menos um rastro
vida afora

Júlio Castañon Guimarães

In: Poemas (1975-2005). São Paulo: Cosacnaify, 2006.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Outro princípio de incêndio

...a tua cabeleira feita de sombras negras...

Mário Quintana


IN: QUINTANA, Mário. Nova antologia poética.São Paulo: Globo, 2007, p. 125.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

domingo, 15 de agosto de 2010

A lírica grega

VII: 24

Videira, mãe da uva e do vinho que a tudo apaziguas,
possa a teia de tuas gavinhas tortuosas
florescer, exuberante, no chão fino e coroar
a estela da tumba do teano Anacreonte,
para que ele, festeiro e ébrio do vinho a que é tão dado,
tangendo sua lira de amante de rapazes
noite afora, sob a terra, tenha acima da cabeça
os galhos com o esplêndido racimo maduro,
e que possa umedecê-lo sempre o sereno da noite
que sua boca de ancião tão doce respirava.

Tradução: José Paulo Paes

IN: PAES, José Paulo. Poemas da antologia grega ou palatina. Séculos VII a.C. a V d.C. Seleção, tradução, notas e posfácio de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.15.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Os clássicos

x: 107

Nenhum mortal é feliz sem que o deus queira assim.
Quanta desigualdade na sorte dos mortais!
Uns se saem bem na vida, outros porém que honram
os deuses passam por dolorosos infortúnios.

Eurípedes

Tradução: José Paulo Paes

IN: PAES, José Paulo. Poemas da antologia grega ou palatina. Séculos VII a.C. a V d.C. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 19.

domingo, 8 de agosto de 2010

Soneto de Dante, de Vida Nova

Guido, eu quisera que tu, Lapo e eu
fôssemos presa de um encantamento
e postos numa nave solta ao vento
vogando pelo mar segundo o teu,

nosso desejo o que a sorte escolheu
para em nada encontrar impedimento.
De modo que entre nós cada momento
unisse bem vosso desejo ao meu

Senhora Vana e Dona Lágia então
e a do número trinta residente
a nós trouxesse o mago, tempo além:

e aí, falar de amor, e da questão
de estarem todas três muito contentes
como haveríamos de estar também.

Dante Alighieri

Tradução: Jorge Wanderley

IN:STERZI, Eduardo. Por que ler Dante. São Paulo: Globo, 2008, p. 134-135.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Os amantes, de René Magritte

Alô, Jarbas!

SONETO DE ABRIL

Agora que é abril, e o mar se ausenta
secando-se em si mesmo como um pranto,
vejo que o amor que te dedico aumenta
seguindo a trilha de meu próprio espanto.

Em mim, o teu espírito apresenta
todas as sugestões de um doce encanto
que em minha fonte não se dessedenta
por não ser fonte d'dágua, mas de canto.

Agora que é abril, e vão morrer
as formosas canções dos outros meses,
assim te quero, mesmo que te escondas:

amar-te uma só vez todas as vezes
em que sou carne e gesto, e fenecer
como uma voz chamada pelas ondas.

Ledo Ivo

IVO, Lêdo. Central Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976, p.47.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Os leões estão brincando no jardim

Dentes gelados, unhas à mostra
o leão arranha levemente
a pele de puro gesso: estátua branca
Peônias farfalham mudas
ante a imaginação selvagem e furiosa
vento vento vento
na tarde de abismos, constelações
de leões, centauros prontos para o bote,
o amor perigoso, atado ao tudo
ou nada: um par de olhos diante
de sua máscara de oxigênio

Ademir Assunção

In: DANIEL, Cláudio e BARBOSA, Frederico.Na virada do século. Poesia de invenção no Brasil.São Paulo: Landy, 2002, p. 34.

PÁLIDO CÉU ABISSAL

que não nos protege,
é antes cúmplice, ou mentor
intelectual dessas ruínas,
de nossas mentes estropiadas.
Ao passar por certas casas e ruas
suburbanas, ocorre às vezes
de nos depararmos com algo
que brilha deslumbrante e dissimétrico,
e nos comove a ponto de nos
perguntarmos se de sua aparição
escandalosa, sua cauda
luminosa de átomos e vazio,
poderão surgir algum dia
moças asseadas em vestidos
de flores, conduzindo pela
mão crianças bem penteadas
para a Escola Municipal,
o Sonho Municipal.
Parei um dia em uma dessas
praças e, deitado sobre a
grama, me pus a escutar a
desconexão absoluta de
todas as falas do mundo, de
todos os sonhos do mundo.
Ao levantar-me para buscar
um pouco de água no tanque
vazio vi (me encarava)
uma ratazana que ainda
assim me lembrou
Debra Wingers
abandonada no deserto.

Carlito Azevedo

AZEVEDO, Carlito. Monodrama. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009, p. 55.

FRUTA-FURTO

Atrás do grupo-escolar ficam as jabuticabeiras.
Estudar, a gente estuda. Mas depois,
ei pessoal: furtar jabuticaba.

Jabuticaba chupa-se no pé.
O furto exaure-se no ato de furtar.
Consciência mais leve do que asa
ao descer,
volto de mãos vazias para casa.

Carlos Drummond de Andrade

IN: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 985.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

terça-feira, 15 de junho de 2010

Leminski

três haikais de Leminski

cinco bares, dez conhaques

atravesso são paulo

dormindo dentro de um táxi



longo o caminho até o céu

essa minha alma vagabunda

com gosto de quarto de hotel



dia sem senso

acendo o cigarro no incenso


Paulo Leminski

IN: LEMINSKI, Paulo. La vie en close. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

domingo, 6 de junho de 2010

Um poema de Edna St. Vincent Millay

Lamento sem música


Não estou conformada com o encerramento na terra de
corações apaixonados.
Assim é e será pois sempre foi, em qualquer época
passada.
Vão para a sombra os sábios, os amáveis. Coroados
com lírios e louros; mas eu não estou conformada.

O amante, o pensador, na terra com eles você se
confundiu.
Na bruta e promíscua poeira, como corpo dos outros, o
seu.
Um fragmento do que você soube, do que você sentiu.
Uma fórmula, uma frase ficam; mas o melhor se perdeu.

A resposta arguta, o olhar honesto, o amor, o riso perfeito
- Perdidos. Foram alimentar as rosas. Elegante, ondulado,
se descerra.
O canteiro. Fragrantes, os canteiros. Eu sei. Mas não
aceito.
Mais preciosa era a luz dos seus olhos que todas as rosas da
terra.


Tradução: Jorge Wanderley.

In: WANDERLEY, Jorge. Antologia da nova poesia norte-americana. Seleção, tradução e notas de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1992, p.147-148.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

De emblemas

A economia já previa
o desabar da chuva
no interstício de algum
cálculo diferencial?

pensa o jovem lírico
em frente à janela

Carlito Azevedo

In: AZEVEDO, Carlito. Monodrama. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009, p. 15.

domingo, 30 de maio de 2010

Baudelaire sob o sol

o sol
(a ser adjetivado:
im-pla-cá-vel)
descorou a capa
de um volume de baudelaire

as flores do mal
(descubro)
não resistem à lenta
violência do sol
(sol de boca-de-sertão
que estorrica o solo?)

também
quem mandou
colocar a estante
nesta posição:
o que estaria baudelaire
(em efígie gráfica)
fazendo no sertão?

se as flores do mal
não suportam o sol
(respondez baudelaire)
resistiriam aos punhais
do óxido e do sal?

Carlos Ávila

IN: DANIEL, Claudio e BARBOSA, Frederico. Na virada do século. Poesia de invenção no Brasil. São Paulo: Landy, 2002, p. 91.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

PARANAGUADAS

Que importa que tu fales
Que importa que tu files
Que importa que não cales,
Que importa que tu fales
Que importa que tu rales
Que importa-me essa bílis
Que importa que tu fales
Que importa que tu files

Cruz e Sousa

In: SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p.338.

domingo, 23 de maio de 2010

FALAR

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sos vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

Ferreira Gullar

In: GULLAR, Ferreira. Poesia completa, teatro e prosa.Organização de Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. 475.

terça-feira, 18 de maio de 2010

leminskiana

la vie en close
c'est une autre chose

c'est lui

c'est moi
c'est ça

c'est la vie des choses
qui n'ont pas
un autre choix

paulo leminski

IN: LEMINSKI, Paulo. La vie en close. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

domingo, 16 de maio de 2010

Brueghel, o Velho

Palavra e imagem

IX A PARÁBOLA DOS CEGOS

Esta horrível mas soberba tela
a parábola dos cegos
sem vermelho algum

na composição mostra um bando
de mendigos um a
guiar o outro atravessando

diagonalmente o quadro
desde um lado
para tropeçar enfim num charco

onde a pintura
e a composição terminam atrás
do qual nenhum homem vidente

é representado os rostos
sem barbear dos in-
digentes com seus poucos

e miseráveis pertences vê-se
uma bacia de lavar numa casinha
campônia e a ponta de uma torre de igreja

as faces estão erguidas
como que para a luz
não há nenhum detalhe estranho

à composição cada um
segue os outros bordão
na mão triunfante até o desastre

William Carlos Williams

Tradução de José Paulo Paes



IX THE PARABLE OF THE BLIND

This horrible but superb painting
the parable of the blind
without a red

in the composition shows a group
of beggars leading
each other diagonally downward

across the canvas
from one side
to stumble finally into a bog

where the picture
and the composition ends back
of which no seeing man

is represented the unshaven
features of the des-
titute with their few

pitiful possessions a basin
to wash in a peasant
cottage is seen and a church spire

the faces are raised
as toward the light
there is no detail extraneous

to the composition one
follows the others stick in
hand triumphant to disaster

William Carlos Williams

IN: WILLIAMS, William Carlos. Poemas. Tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 252-253.

sábado, 15 de maio de 2010

Um moderno

A DURAÇÃO

Uma folha amarfanhada
de papel pardo mais
ou menos do tamanho

e volume aparente
de um homem ia
devagar rua abaixo

arrastada aos trancos
e barrancos pelo
vento quando

veio um carro e lhe
passou por cima
deixando-a aplastada

no chão. Mas diferente
de um homem ela se ergueu
de novo e lá se foi

com o vento aos trancos
e barrancos para ser
o mesmo que era antes.

William Carlos Williams

Tradução: José Paulo Paes

THE TERM

A rumpled sheet
of brown paper
about the length

and apparent bulk
of a man was
rolling with the

wind slowly over
and over in
the street as

a car drove down
upon it and
crushed it to

the ground. Unlike
a man it rose
again rolling

with the wind over
and over to be as
it was before.

William Carlos Williams

IN: WILLIAMS, William Carlos. Poemas. Tradução e introdução de José Paulo Paes.São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 134-135.

Canção do Exílio


Um dia segui viagem
sem olhar sobre o meu ombro.

Não vi terras de passagem
Não vi glórias nem escombros.

Guardei no fundo da mala
um raminho de alecrim.

Apaguei a luz da sala
que ainda brilhava por mim.

Fechei a porta da rua
a chave joguei ao mar.

Andei tanto nesta rua
que já não sei mais voltar.

José Paulo Paes

PAES, José Paulo. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.19.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Blackitude

13 de Maio
Caetano Veloso


Dia 13 de maio em Santo Amaro
Na Praça do Mercado
Os pretos celebravam
(Talvez hoje inda o façam)
O fim da escravidão
Da escravidão
O fim da escravidão

Tanta pindoba!
Lembro do aluá
Lembro da maniçoba
Foguetes no ar

Pra saudar Isabel
Ô Isabé
Pra saudar Isabé

© Uns Produções Artísticas Ltda
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retrato do artista quando jovem

pegando o sol da contracultura
em nossa praia
pierrô ou arlequim
de itapuã ou ipanema
alá waly
areia e mar
nem vou contar
as contas do meu colar






rodchenko

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sem cais
Caetano Veloso
Pedro Sá


catei colo e o mar parou
fui deitando pra perguntar
nome, bairro, amigo, amor
de onde vem parar o mar

seu sorriso bateu aqui
inda posso me apaixonar

quero tanto quero tanto quero tanto você
mar aberto, mar adentro, mar imenso, aberto, sem cais
tou com medo tou com medo tou com medo tou com medo de ver
que inda posso que inda posso que inda posso ir bem mais

Barra, Gávea e Arpoador
deuses brancos de luz do mar
deuses negros, um esplendor
quem é essa e o que será

quem me dera eu poder me dar
todo a essa que eu nunca vi

© Natasha Edições

domingo, 9 de maio de 2010

O CANTO DOS CRONÓPIOS

Quando os cronópios cantam suas canções preferidas, ficam de tal maneira entusiasmados que frequentemente se deixam atropelar por caminhões e ciclistas, caem da janela e perdem o que tinham nos bolsos e até a conta dos dias.
Quando um cronópio canta, as esperanças e os famas acorrem a ouvi-lo embora não compreendam muito seu arrebatamento e em geral se mostram um tanto escandalizados. No meio da roda o cronópio suspende seus bracinhos como se segurasse o sol, como se o céu fosse uma bandeja e o sol a cabeça do Batista, de forma que a canção do cronópio é Salomé nua dançando para os famas e as esperanças que ali estão boquiabertos e perguntando-se se o senhor padre, se as conveniências. Mas como no fundo são bons (os famas são bons e as esperanças bobas) acabam aplaudindo o cronópio, que se recupera sobressaltado, olha em redor e começa também a aplaudir, coitadinho.

Julio Cortázar

In: CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e famas. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973, p. 130-131.

Trecho de diário

Hoje me acordei pensando em uma pedra numa rua de Calcutá.
Numa determinada pedra em certa rua de Calcutá,
Solta, sozinha. Quem repara nela?
Só eu, que nunca fui lá,
Só eu, deste lado do mundo, te mando agora este pensamento...
Minha pedra de Calcutá!


Mário Quintana

(Apontamentos de história sobrenatural)


QUINTANA, Mário. Primavera cruza o rio. Organização de Maria da Glória Bordini. Rio de Janeiro: Globo, 1985, p. 55.

sábado, 8 de maio de 2010

Blake

CANÇÃO DEMENTE

A noite é muito fria,
Selvagem uiva o vento;
Vem, Sono, e me alivia
De tanto sofrimento:
Mas eis que espreita o sol nascente
Na escarpa do oriente,
E eis que a passarada da aurora
À terra ignora.

Vê! Para a abóbada
Do céu pavimentado,
Repleto de tristeza
O meu canto é levado:
Umedece os olhos do dia,
Os ouvidos da noite invade,
Enlouquece a ventania...
E brinca a tempestade.

Qual diabo por nuvem coberto,
Com angústia ululante,
Sigo a noite de perto
E irei com ela adiante;
Volto as costas à aurora,
De onde o consolo aflora,
Que a luz me agarra a mente
Com dor fremente.

William Blake

MAD SONG

The wild winds weep,
And the night is a-cold;
come hither, Sleep,
And my griefs infold:
But lo! the morning peeps
Over the eastern steeps,
And the rustling birds of dawn
The earth do scorn.

Lo! to the vault
Of pavèd heaven,
With sorrow fraught
My notes are driven:
They strike the ear of night,
Make weep the eyes of day;
They make mad the roaring winds,
And the tempests play.

Like a fiend in a cloud
With howling woe,
After night I do crowd,
And with night will go;
I turn my back to the east,
From whence comforts have increas'd;
For light doth seize my brain
With frantic pain.

Tradução: Paulo Vizioli.

In: BLAKE, William. Poesia e prosa selecionadas. Edição bilíngue. São Paulo: J. C. Ismael,1984, p. 12-13.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Nada por acaso

O pedantismo ingênuo
dos joguinhos de palavras
e dos trocadilhos sem graça
nada significam
no branco da página.

Oh! Cobiçado branco da página,
para onde se volta todo o desejo do poeta.

Nesse afã de brincar,
quem sabe ele busca
algum niilismo da escrita

ou simplesmente
tal qual um menino buchudo
se diverte
dando banana a Mallarmé.

Palavras por elas próprias
e o fait-divers da poesia
se dissemina farto.

João Batista de Morais Neto

sábado, 1 de maio de 2010

Este amor
Caetano Veloso



Se alguém pudesse ser um siboney
Boiando à flor do sol
Se alguém, seu arquipélago, seu rei
Seu golfo e seu farol
Captasse a cor das cores da razão do sal da vida
Talvez chegasse a ler o que este amor tem como lei

Se alguém, judeu, iorubá, nissei, bundo
Rei na diáspora
Abrisse as suas asas sobre o mundo
Sem ter nem precisar
E o mundo abrisse já, por sua vez, asas e pétalas
Não é bem, talvez, em flor
Que se desvela o que este amor

(Tua boca brilhando, boca de mulher
Nem mel, nem mentira
O que ela me fez sofrer, o que ela me deu de prazer
O que de mim ninguém tira
Carne da palavra, carne do silêncio
Minha paz e minha ira
Boca, tua boca, boca, tua boca, cala minha boca)

Se alguém, cantasse mais do que ninguém
Do que o silêncio e o grito
Mais íntimo e remoto, perto além
Mais feio e mais bonito
Se alguém pudesse erguer o seu Gilgal em Bethânia
Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?

Se alguém, nalgum bolero, nalgum som
Perdesse a máscara
E achasse verdadeiro e muito bom
O que não passará
Dindinha lua brilharia mais no céu da ilha
E a luz da maravilha
E a luz do amor
Sobre este amor

© Editora Gapa

Gil engendra em gil rouxinol

Logos versus logo
Gilberto Gil

Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade

Celebra-se, poeta que se é
Durante um tempo a idéia radical
De tudo importar, se para o supremo ser
De nada importar, se para o homem mortal

Abarrotam-se os cofres do saber
Um saber que se torne capital
Um capital que faça o futuro render
Os juros da condição de imortal

(Mas a morte é certa!)

Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade

E assim por muito tempo busca-se
O cuidadoso esculpir da estátua
Que possa atravessar os séculos intacta
Tornar perpétua a lembrança do poeta

Mas chega-se ao cruzamento da vida
O ser pra um lado, pra outro lado o mundo
Sujeita-se o poeta à servidão da lida
Quando a voz da razão fala mais fundo

E essa voz comanda:

Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade

E o bom poeta, sólido afinal
Apossa-se da foice ou do martelo
Para investir do aqui e agora o capital
No produzir real de um mundo justo e belo

Celebra assim, mortal que já se crê
O afazer como bem ritual
Cessar da obsessão pelo supremo ser
Nascer do prazer pelo social

E o poeta grita:

Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade

Eis o papel da grande cidade
Eis a função da modernidade

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Raça

O padre Caldas
orangotango da Corte
entre a Arcádia e a rua
com a sua Viola de Lereno
faz irromper sua fúria branda

Cruz e Sousa
fascina-se pelas imagens brancas
e pela assepsia das formas
mas em seu emparedamento
afirma sua negra dor.

O mulato Lima
vivendo na fronteira
em que álcool, loucura e miséria
formaram um molotov de adversidades
detonou o mundo medíocre de sua época
sendo “pobre, mulato e livre”.

Gil
de refazenda e realce
da refavela ao poder
afirma seu brilho
de canto e discurso
a cintilação de palavra e gesto
em cores vivas.

Machado
Ah! O bruxo!
Esse sublimou.

João Batista de Morais Neto

quarta-feira, 28 de abril de 2010

DOS ONZE E DOIS POEMAS

Fina teia de aranha, tecem o verbo no céu
os ramos da Pensilvânia batidos pelo vento;
em seu desenho eu leio o ignoto.
Insular que matou a sede em oliveiras de luar
revolucionário, imigrante, sou de ofício
intérprete de sonhos. Examino os Magos van
van Eyck e Bosch e Breton e
Duchamp. Saúdo ateus budistas
do Colorado, anarquistas heréticos.
Festejo o solstício e aniversário
de qualquer Comuna. Cultuo, à sombra do monte Atos
e das pirâmides, Vênus Afrodite.
Perco-me na multidão, reencontro-me a mim mesmo
nas artérias de Babilônia
na palma do futuro.

Kálas


In: PAES, José Paulo (Org). Poesia Moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p.189.

terça-feira, 27 de abril de 2010

poema

UM CERTO SPLEEN TARDIO


Não dá pra disfarçar
A tristeza

A blusa amarela
A calça azul-marinho
O sapato novo luzindo

O passo de dança
Como um bailado de rua
Enquanto ainda há vento na cidade

Mas os edifícios crescem gigantes
Na construção da mimese das grandes metrópoles
Aumentando o calor da província
Sufocando os pulmões que eram tão puros

O spleen está na cara
A alma se vê por fora
Parece o absurdo da cidade
Tão bruta
Atropelando-se na confusão dos dias

Um flanêur periférico é como
Sempre um flanêur
Um passante deslocado na paisagem

João Batista de Morais Neto

quinta-feira, 22 de abril de 2010

poema

faz três semanas
espero
depois da novela
sem falta
um telefonema
de algum ponto
perdido
do país


ana cristina cesar

CESAR, Ana Cristina. Novas seletas. Organização, apresentação e notas de Armando Freitas Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p.53.

domingo, 18 de abril de 2010

O poeta e seus babilaques

Mascarado avanço

Ela desinfla o mal-estar
na civilização.
Ela prescinde da felicidade
dos bem-postos na vida.
Quanto mais na lida diária
o Tedium Vitae preside
tanto mais
eu e ela nos fundimos extáticos,
crentes da seita dos dervixes girantes.
Eu, com ansiosa solicitude,
agarro qualquer bóia
- destroço seja jóia -
e comando o lupanar do lumpensinato da ilusão.
E, ela, que papel cumpre?
Ela imprime descomunal animação
à falange
das minhas máscaras.

Waly Salomão

In: SALOMÃO, Waly. O mel do melhor. Rio de Janeiro: Rocco,2001, p. 107.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

BLEFE

pois esse é o mês bastardo, azinhavre
engole o que há de doce nos metais
silêncio embaça a pele dos diários
lençóis têm cor de áridos lençóis

existe azul, mas é um azul de asma
que a nitidez da tarde faz em cápsula
espelhos só devolvem olheira e pragas
um gesto que de fácil despedaça

catódica essa luminosidade
estranha o sol repele o sol. intacto
o tique que quedou meus dias gagos

a rima fica lívida nos lábios
e dor sem voz passeia o seu contágio
um gato eletrifica. arrisco maio.

Claudia Roquette-Pinto

IN: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Esses poetas. Uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998, p. 118.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

domingo, 11 de abril de 2010

Um poema de Paul Celan

À noite, quando o pêndulo do amor oscila
entre sempre e nunca,
tua palavra toca as luas do coração
e teu tempestuoso olho
azul alça o céu à terra.

De longe, do negrissonhado
bosque advém-nos o sopro,
e o perdido circula, grande como os esquemas do futuro.

O que agora sobe e desce
vale para o íntimo soterrado:
cego como o olhar que trocamos,
beija o tempo na boca.


CELAN, Paul. Poemas. Tradução de Flávio Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977, p.25.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

ESCOLHO

Parado

Na plataforma superior

Entre as pernas
no chão
as compras num plástico

Longe do verso perto da prosa
Sem ânimo algum
para as sortidas sempre -
enquanto duram -
venturosas da paixão

Longe tão longe
do humor da ironia
das polimorfas vozes
sibilinas
transtornadas no ouvido
da língua

Ali onde o chão é chão
as pernas, pernas
a coisa, coisa
e a palavras, nenhuma
Onde apenas se refrata
a ideia
de um pensamento exaurido
de movimento

Entre dois trajetos
dois portos
(duas lagunas)
duas doenças

Sublimes virtudes do acaso
por que não me tomais
por dentro
e me protegeis do frio de fora
da incessante, intolerável, fuga do enredo?
da escolha?

Francisco Alvim

ALVIM, Francisco. Elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.133-134.

sábado, 27 de março de 2010

Poemas

EL AMOR DUERME EN EL PECHO DEL POETA

Tú nunca entenderás lo que te quiero
porque duermes em mí y estás dormido.
Yo te oculto llorando, perseguido
por una voz de penetrante acero.

Norma que agita igual carne y lucero
trespasa ya mi pecho dolorido
y las turbias palabras han mordido
las alas de tu espíritu severo.

Grupo de gente salta en los jardines
esperando tu cuerpo y mi agonía
en caballos de luz y verdes crines.

Pero sigue durmiendo, vida mía.
!Oye mi sangre rota en los violines!
!Mira que nos acechan todavía!

Federico García Lorca





O AMOR DORME NO PEITO DO POETA

Não mais entenderás quanto eu te quero,
porque em mim dormes e estás adormecido.
Eu escondo-te a chorar, e perseguido
por uma voz de aço que penetra.

Regra que a carne e o esplendor excita,
trespassa já meu peito dolorido
e as túrbidas palavras já morderam
as asas do teu severo espírito.

Há pessoas que saltam nos jardins
esperando o teu corpo e minha agonia,
em cavalos de luz e verdes crinas.

Mas vai tu dormindo, vida minha.
Ouve o meu sangue solto nos violinos!
Ainda há gente, vê, que nos espia!

Federico García Lorca

LORCA, Federico García. Amor obscuro.Tradução de António Moura. Lisboa: Hiena, 1992.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A FEDERICO GARCÍA LORCA

Sobre teu corpo, que há dez anos
se vem transfundindo em cravos
de rubra cor espanhola,
aqui estou para depositar
vergonha e lágrimas.

Vergonha de há tanto tempo
viveres - se morte é vida -
sob chão onde esporas tinem
e calcam a mais fina grama
e o pensamento mais fino
de amor, de justiça e paz.

Lágrimas de noturno orvalho,
não de mágoa desiludida,
lágrimas que tão-só destilam
desejo e ânsia e certeza
de que o dia amanhecerá.

(Amanhecerá.)

Esse claro dia espanhol,
composto na treva de hoje,
sobre teu túmulo há de abrir-se,
mostrando gloriosamente
- ao canto multiplicado
de guitarra, gitano e galo -
que para sempre viverão

os poetas martirizados.

Carlos Drummond de Andrade

IN: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003,p. 237.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Rua Dr. Barata


E de repente Natal
virou mesmo Hollywood.
Passeava o Rei Faissal,
Tyrone Power e Roosevelt.

Evita Peron, Joe Brown,
Bernhardt of Hetherlands,
Eva Curie, Eisenhower,
e o Admiral Briggs.

Inglês emergencial
até pra quem não estude:
Good morning matinall
e à noite, Mary Good.

Vão da Ribeira ao Tirol
sugestões para que mude
o idioma nacional
por um outro, very good.

Wonder Bar monumental.
Juke-box, sounds good.
Tão de repente Natal
virou mesmo Hollywood.

Paulo de Tarso Correia de Melo

In: MELO, Paulo de Tarso Correia de.Folhetim cordial da guerra em Natal e Cordial folhetim da guerra em Parnamirim.2 ed. Natal: Edufrn, 2008, p. 27.

domingo, 7 de março de 2010

O Rilke concreto

I, 22

Wir sind die Treibendem.
Aber den Schritt der Zeit,
nehmt ihn als Kleinigkeit
im immer Bleibendem.

Alles das Eilende
wird schon vorüber sein;
denn das Verweilende
erst weiht uns ein.

Knaben, o werft den Mut
nicht in die Schnelligkeit,
nicht in den Flugversuch.

Alles ist ausgeruht:
dunkel und Helligkeit,
Blume und Buch.

Rainer Maria Rilke


I, 22
A nós, nos cabe andar.
Mas o tempo, os seus passos,
são mínimos pedaços
do que há de ficar.

É perda pura
tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.

JOvem, não há virtude
na velocidade
e no voo, aonde for.

Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.

Tradução: Augusto de Campos

IN: CAMPOS, Augusto de. Rilke: poesia-coisa.Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 66-67.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Poesia grega antiga

IX: 569

Pois em verdade eu já fui rapaz, já fui donzela,
fui arbusto, pássaro, ardente peixe do mar.

Empédocles

Tradução: José Paulo Paes

IN: PAES, José Paulo (Seleção, tradução, notas e prefácio). Poemas da Antologia Grega ou Palatina. Séculos VII a.C. a V d.C.São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 21.

terça-feira, 2 de março de 2010

segunda-feira, 1 de março de 2010

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Para ler e ouviver

Pecado original
Caetano Veloso



Todo dia, toda noite, toda hora,
Toda madrugada, momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vive a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã

Quando a gente volta o rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro, não
A gente não sabe nunca ao certo onde colocar o desejo

Todo beijo, todo medo, todo corpo
Em movimento está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto, todo pranto, todo manto
Está cheio de inferno e céu
O que fazer com que Deus nos deu?
O que foi que nos aconteceu?

Quando a gente volta o rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro, não
A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo

Todo homem, todo lobisomem
Sabe a imensidão da fome que tem de viver
Todo homem sabe que essa fome é mesmo grande
Até maior que o medo de morrer
Mas a gente nunca sabe mesmo o que é que quer uma mulher

© Editora Gapa

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Poema de Kaváfis

TEDIÁRIO


O enfado jornalário emula o enfado
jornalário. A idiotia reincide
no episódico, idiotia rediviva -
a minudência especular do vai e vem.

A mesmice mensal do mês.
Presumir o porvir não requer talento:
o torpor engravida a véspera.
E, vazio de amanhã, amanhece.

Konstantinos Kaváfis

IN: KAVÁFIS, Konstantinos. 60 poemas. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Ateliê, 2007, p. 27.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Excerto do Childe Harold

Do Canto III

72


O mundo eu não o amei, nem ele a mim;
Não bajulei seu ar vicioso, nem dobrei
Aos seus idólatras o joelho do sim. -
Meu rosto não abriu risos ao rei
Nem repetiu ecos; a turba, eu sei,
Não me inclui entre os seus. Vivi ao lado
Deles, porém sem ser da sua grei;
E à mortalha da sua mente atado
Estaria se não me houvesse precatado.

Byron

Tradução: Augusto de Campos

In: CAMPOS, Augusto de. Byron e Keats. Entreversos.São Paulo: Editora da Unicamp, 2009, p.21.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Poema

Sereno ele retorna do impossível
Traz no bico de prata
a rosa azul dos sonhos que tivemos
e nos pés de cristal a morna terra das estrelas
Branco e tranquilo e leve e livre e alegre
quase como se morto já estivesse
o pássaro feliz esvoaça em meu seio
afugentando as sombras com seu canto

1948



Mário Faustino

IN: FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 213.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

PIVA

A situação de desamparo social de Roberto Piva, poeta maior de São Paulo, é a comprovação da intolerável ditadura da sociedade do espetáculo e de sua completa hostilidade à poesia.

Carlos Emílio Barreto C. Lima (No Café Literário, Cronópios, em 27.01.2010

Na Purificação

Para Enzio Andrade

Fomos a Santo Amaro,dia 27 deste janeiro que voa. Saímos de Salvador,eu, Bau e Julinho, logo cedo de manhã. A temperatura era de 31 graus. Festa da Padroeira, Nossa Senhora da Purificação, nos ares do recôncavo baiano. Passamos o dia na praia, Cabuçu, cerveja e tira-gosto de siri catado. Muita água mineral. Fomos para assistir ao show do poeta. Festa bonita,povo bonito. Festa do interior. Tudo muito pacato, sem brigas, sem confusão. O Hotel em que ficamos era no centro em frente à praça. Passeando pela festa, ouço alguém gritar: - João da Rua!. Era o músico-rastafari baiano Jorge Papapa. Combinamos um almoço no domingo em Amaralina.
Primeiro, o show foi de Jota Velloso, sobrinho do poeta, e seus convidados (Luíza Possi, etc.). O show de Caetano só começou quase meia-noite. Ele entrou sozinho com seu violão moderníssimo. E cantou 'Genipapo Absoluto'. "Tudo são trechos que escuto vêm dela - pois minha mãe é minha voz". Bonito demais. Era uma homenagem perfeita, já que, pela primeira vez, a matriarca estava impossibilitada de participar da festa. Depois foi uma sequência de canções extraodinárias. Pela ordem do repertório, se bem me lembro, 'Não identificado', 'Trilhos Urbanos', 'Menino do Rio', 'A voz do morto', 'Odeio', 'Terra', etc.
Lembrei de Vicente Januário, de Enzio.
Fomos dormir abençoados.
Pela manhã, fomos à Cachoeira, pegar umas garrafas do famoso licor que é fabricado lá. Sabor de genipapo absoluto.

João Batista de Morais Neto

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

foto de bresson

Canção de alta noite

Alta noite, lua quieta,
muros finos, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não precisa de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

Cecília Meireles

MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 38.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Contra a fama

Ser famoso não é bonito.
Não nos torna mais criativos.
São dispensáveis os arquivos.
Um manuscrito é só um escrito.

O fim da arte é doar somente.
Não são os louros nem as loas.
Constrange a nós, pobres pessoas,
Estar na boca de toda a gente.

Cumpre viver sem impostura.
Viver até os últimos passos.
Aprender a amar os espaços
E a ouvir o som da voz futura.

Convém deixar brancos à beira
Não do papel, mas do destino,
E nesses vãos deixar inscritos
Capítulos da vida inteira.

Apagar-se no anonimato,
Ocultando nossa passagem
Pela vida, como à paisagem
Oculta a nuvem com recato.

Alguns seguirão, passo a passo,
As pegadas do teu passar,
Porém não deves separar
Teu sucesso de teu fracasso.

Nâo deves renunciar a um mín-
Imo pedaço do teu ser,
Só estar vivo e permanecer
Vivo, e viver até o fim.

Boris Pasternak

Tradução: Augusto de Campos

In: CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.103-104.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Poema de Catulo

38


Malest, Cornifici, tuo Catullo,
malest, me hercule, et laboriosi,
et magis magis in dies et horas,
quem tu, quod minimum facilimumque est,
qua solatus es allocutione?
Irascor tibi. Sic meos amores?
Paulum quid lubet allocutionis,
maestius lacrimis Simonideis.



38

Vai mal, Cornifício, o teu Catulo
vai mal e padece demais, muito
mais, a cada dia, a cada hora.
E tu - se era nuga, se era nada -
que consolo deste, que palavras?
Sinto ódio. Assim, és meus amores?
Só poucas palavras, certas, mais
tristes que o lamento de Simônides.

Catulo

Tradução de João Ângelo Oliva Neto

In: O livro de Catulo. São Paulo: Edusp, 1996, p. 93.

Malest cornifici tuo catullo

Estou feliz, Kerouac, seu louco Allen
finalmente conseguiu: achou um cara novo
e minha imagem de um garoto eterno
passeia pelas ruas de San Francisco,
lindo, e me encontra nas cafeterias
e me ama. Ah, não pense que estou maluco.
Você está zangado comigo. Pelos meus amantes?
É duro comer merda, sem ter visões;
quando eles me olham, para mim é o Paraíso.

Allen Ginsberg
Tradução: Claudio Willer

GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1984, p. 158.

Malest Cornifici Tuo Catullo

I'm happy, Kerouac, your madman Allen's
finally made it: discovered a new young cat,
and my imaination of an eternal boy
walks on the streets of San Francisco,
handsome, and meets me in cafeterias
and loves me. Ah don't think I'm sickening.
You're angry aat me. for all of my lovers?
It's hard to eat shit, without having visions;
when they have eyes for me it's like Heaven.

San Francisco, 1955

Allen Ginsberg

GINSBERG,Allen. Collected Poems.1947-1980. London: Penguin Books, 1987, p. 123.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Fazendo chover no seu piquenique

sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é meu forte,
meu amor?

Paulo Leminski


LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.38.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O ANO PASSADO

O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.

Carlos Drummond de Andrade

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 1249.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Definição de Poesia

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, a folha sob o granito.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazes para o jardim uma estrela
Nas palmas úmidas,tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

Boris Pasternak

1917

Tradução de Haroldo de Campos

CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris. Poesia Russa Moderna. Nova Antologia. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Vers de circonstance

A pessoa que mais amo
é feita desse mirante,
dessa época do ano,
do perto desse distante.

E o oceano e as pedras
cabem no vinco de horror
que é sua falta em meu rosto,
Tróia no rosto de Heitor.

Carlito Azevedo

AZEVEDO, Carlito. Sublunar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. p. 94.

A terra, em transe, treme

As terras potiguares em transe tremem. O que faz minha queridíssima amiga Marília lembrar dos versos do maluco beleza. Ei-los:

Buliram muito com o planeta
E o planeta como um cachorro eu vejo
Se ele já não aguenta mais as pulgas
Se livra delas num sacolejo

Raul Seixas

As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Fragmento de memórias

"Vê lá se D.Lourença admitia negro calçado... Tampouco usando jóias e cheiros que nem a sinhá. Mas que importava? 'Brinco-de-princesa' não é bicha? 'Esporinha' não faz pulseira? 'Lágrima-de-nossa-senhora', colar e 'Sempre-viva', coroa? Além dessas gemas vivas, as morenas tinham banha de porco para amansar o pixaim. Para amainar suas ondas, óleo de babosa. Para fazê-lo brilhar, gosma de quiabo. E tinham a farmacopeia doméstica cheia dos preparos que, além de curarem o corpo, tinham serventia de perfume. As mulatas recendiam a infuso de alecrim, azeite de funcho, gordura de alfazema, banho de alfavaca, óleo de manjericão, chá de congossa, a cozimento de manjerona, a loção de tomilho... Tinham ervas de cheiro para esmagar nas mãos. Capim-cheiroso para esconder no decote. E tinham os supremos, os profundos sovacos de onde saíam as espirais do xexéu que faziam tremer as narinas dos machos da casa. Dos negros do cascalho, dos de dentro, dos feitores, do Sinhô, dos meninos. Essa proximidade de fogo e pólvora..."
Pedro Nava

NAVA, Pedro. Baú de Ossos. Memórias I. 7 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 181.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A cidade e os símbolos

Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles. Se descrevo Olívia, cidade rica de mercadorias e de lucros, o único modo de representar a sua prosperidade é falar dos palácios de filigranas com almofadas franjadas nos parapeitos dos bífores, uma girândola d'água num pátio protegido por uma grade rega o gramado em que um pavão branco abre a cauda em leque. Mas, a partir desse discurso, é fácil compreender que Oblívia é envolta por uma nuvem de fuligem e gordura que gruda na parede das casas; que, na aglomeração das ruas, os guinchos manobram comprimindo os pedestres contra os muros. Se devo descrever a operosidade dos habitantes, falo das selarias com cheiro de couro, das mulheres que tagarelam enquanto entrelaçam tapetes de ráfia, dos canais suspensos cujas cascatas movem as pás dos moinhos: mas a imagem que essas palavras evocam na sua iluminada consciência é o movimento que leva o mandril até os dentes da engrenagem repetido por milhares de mãos milhares de vezes nos tempos previstos para cada turno. Se devo explicar como o espírito de Olívia tende para uma vida livre e um alto grau de civilização, falarei da mulheres que navegam de noite cantando em canoas iluminadas entre as margens de um estuário verde; mas isso serve apenas para recordar que, nos subúrbios em que homens e mulheres desembarcam todas as noites como fileiras de sonâmbulos , sempre existe quem começa a gargalhar na escuridão, dá vazão às piadas e aos sarcasmos.
Pode ser que isto você não saiba: que para falar de Olívia eu não poderia fazer outro discurso.Se de fato existisse uma Olívia de bífores e pavões, de seleiros e tecelãs de tapetes e canoas e estuários, seria um mero buraco negro de moscas, e para descrevê-la eu teria de utilizar as metáforas da fuligem, dos chiados de rodas, dos movimentos repetidos, dos sarcasmos. A mentira não está no discurso, mas nas coisas.
Italo Calvino

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis.São Paulo: Companhia das Letras,1997. P. 60