segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Santa Tereza Fields Forever

Santa Tereza
Amelinha
Composição: Raimundo Fagner / Abel Silva



Dez da manhã esse dia
é um bonde que me guia, sobre curvas e perigos
na lembrança dos amigos
Sobe o morro da alegria, desce a ladeira do medo
viaja ao meio-dia, força crua de um segredo
Esse dia posto ao meio, fio limite de uns olhos
Que me olham passageiros pelas ruas da cidade
Leio as cartas dos leitores nos jornais, a madrugada
Viaja pra muito longe nesse meio-dia a dia
Nesse bonde lembro e esqueço
Tão passageiro é o dia





DITA

a Dedé Veloso

Qualquer poema bom provém do amor
narcíseo. Sei bem do que estou falando
e os faço eu mesmo pondo à orelha a flor
da pele das palavras, mesmo quando

assino os heterônimos famosos:
Catulo, Caetano, Safo ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
por sermos enquanto nos desejando.

Beijando o espelho d'água da linguagem,
jamais tivemos mesmo outra mensagem,
jamais advinhando se a arte imita

a vida ou se a incita ou se é bobagem:
desejarmo-nos é a nossa desdita,
pedindo-nos demais que seja dita.

Antonio Cicero

CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1997. P. 29.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

De "Os dragões não conhecem o paraíso"

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

ABREU, Caio Fernando.Caio 3D. O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005. P. 135.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

das notas íntimas de Kaváfis

Aquilo que, a meu ver, faz com que a literatura inglesa seja fria é - afora certas deficiências da língua inglesa, - o - como dizê-lo? - conservadorismo, a dificuldade - ou relutância - em distanciar-se das convenções e o temor de ofender a moral, a pseudomoral, porque assim devemos chamar à moral dos ignorantes.
No último decênio, foram escritos numerosos livros franceses - bons e maus - que levam em consideração e discutem corajosamente o novo aspecto do amor. Novo fato não é; tem sido tão-só menosprezado há séculos, na presunção de ser um tipo de loucura (o que a ciência desmente) ou delinquência (o que a lógica desmente). Sobre ele, ao que eu saiba, não há nenhum livro inglês. Por quê? Porque temem ofender os preconceitos. E no entanto, esse tipo de amor existe entre os ingleses, assim como existe - e tem existido - em todos os povos, conquanto só para alguns indivíduos.

Konstantinos Kaváfis

IN: KAVÁFIS, Konstantinos.Reflexões sobre poesia e ética. Tradução direta do grego e apresentação de José Paulo Paes. São Paulo: Ática, 1998.

domingo, 20 de dezembro de 2009

chão de pendências

dedicado a Bel e Francisco



Lorca

O poeta diz a verdade

Quero chorar minha mágoa, e to digo
para que tu me ames e me chores
em um anoitecer de rouxinóis,
com um punhal, com beijos e contigo.

Quero matar a única testemunha
para o assassinato de minhas flores
e converter meu pranto e meus suores
em eterno montão de duro trigo.

Que não acabe nunca a madeixa
do bem-me-quer, mal-me-quer, sempre ardida
com decrépito sol e lua velha.

Que o que não me dás e não te peça
será para a morte, que não deixa
nem sombra pela carne estremecida.

Federico García Lorca
Tradução: William Agel de Mello

In: LORCA, Federico García. Antologia Poética. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Hino ao Nilo*

Festa a ti Nilo quando sobre esta terra
te manifestas
A paz é teu caminho vida vida vida ao Egito
Escondes entre as trevas a tua travessia
Hoje se canta a tua passagem
Onda nos jardins frutos e flores ao sol
A tudo que tem sede vida você vida e vida
Sobre os desertos não amas chover
O Nilo desce e o deus da terra faz pão
Em grãos se abre a deusa e outro deus anima as oficinas

Senhor dos peixes vem além da catarata
Nenhum campo mais o pássaro invada
Criador do trigo ventre da cevada
Em teus tempos perdurem todos os templos
De trabalhar não parem teus dedos
Homem, mulher, mulher, homem quem não morre de fome?

*Autoria desconhecida
Tradução de Paulo Leminski

IN: Poemas traduzidos. São Paulo: Folha de S. Paulo, 1987. P. 45.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Para ler, ouvir, ouviver

Não me arrependo
Caetano Veloso
2006

eu não me arrependo de você
cê não me devia maldizer assim
vi você crescer
fiz você crescer
vi cê me fazer crescer também
pra além de mim

não, nada irá nesse mundo
apagar o desenho que temos aqui
nem o maior dos seus erros,
meus erros, remorsos, o farão sumir
vejo essas novas pessoas
que nós engendramos em nós
e de nós
nada, nem que a gente morra,
desmente o que agora
chega à minha voz.

© Uns Produções Artísticas Ltda

sábado, 12 de dezembro de 2009

Tapete verde

Lá, depois das cacimbas
das lavadeiras das Rocas,
entre a Praia do Meio
e a rua Miramar,
arrodeado de areia branca
o Tapete Verde.
Lá, onde a bola,
esse "utensílio semivivo",
rolava nos pés dos craques
do arrabalde
em que suava a camisa
do Racing
na glória dos gols que ficavam
para além do gramado
de areia.

João Batista de Morais Neto

sábado, 5 de dezembro de 2009

SONETO NUM CARDÁPIO

Quem está no prato? O tempo, que o homem come
misturado a espinafre e carne dura.
Entre o talher e a vida ele tritura
as horas que temperam sua fome.

Rei de si mesmo, sem vassalo ou nome,
ele mastiga o mundo, e a dentadura
muda o cardápio numa massa escura
que na úmida garganta rola e some.

O homem que come o pão que o diabo amassa
e quando come se lambuza, e come
gato por lebre, na aventura louca

de tudo reduzir a pesca e caça,
come, para viver, a própria fome,
e, como os peixes, morre pela boca.

Ledo Ivo.

IVO, Ledo.Melhores Poemas. Seleção de Sergio Alves Peixoto. 4 ed. São Paulo: Global, 2001.