sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

PIVA

A situação de desamparo social de Roberto Piva, poeta maior de São Paulo, é a comprovação da intolerável ditadura da sociedade do espetáculo e de sua completa hostilidade à poesia.

Carlos Emílio Barreto C. Lima (No Café Literário, Cronópios, em 27.01.2010

Na Purificação

Para Enzio Andrade

Fomos a Santo Amaro,dia 27 deste janeiro que voa. Saímos de Salvador,eu, Bau e Julinho, logo cedo de manhã. A temperatura era de 31 graus. Festa da Padroeira, Nossa Senhora da Purificação, nos ares do recôncavo baiano. Passamos o dia na praia, Cabuçu, cerveja e tira-gosto de siri catado. Muita água mineral. Fomos para assistir ao show do poeta. Festa bonita,povo bonito. Festa do interior. Tudo muito pacato, sem brigas, sem confusão. O Hotel em que ficamos era no centro em frente à praça. Passeando pela festa, ouço alguém gritar: - João da Rua!. Era o músico-rastafari baiano Jorge Papapa. Combinamos um almoço no domingo em Amaralina.
Primeiro, o show foi de Jota Velloso, sobrinho do poeta, e seus convidados (Luíza Possi, etc.). O show de Caetano só começou quase meia-noite. Ele entrou sozinho com seu violão moderníssimo. E cantou 'Genipapo Absoluto'. "Tudo são trechos que escuto vêm dela - pois minha mãe é minha voz". Bonito demais. Era uma homenagem perfeita, já que, pela primeira vez, a matriarca estava impossibilitada de participar da festa. Depois foi uma sequência de canções extraodinárias. Pela ordem do repertório, se bem me lembro, 'Não identificado', 'Trilhos Urbanos', 'Menino do Rio', 'A voz do morto', 'Odeio', 'Terra', etc.
Lembrei de Vicente Januário, de Enzio.
Fomos dormir abençoados.
Pela manhã, fomos à Cachoeira, pegar umas garrafas do famoso licor que é fabricado lá. Sabor de genipapo absoluto.

João Batista de Morais Neto

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

foto de bresson

Canção de alta noite

Alta noite, lua quieta,
muros finos, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não precisa de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

Cecília Meireles

MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 38.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Contra a fama

Ser famoso não é bonito.
Não nos torna mais criativos.
São dispensáveis os arquivos.
Um manuscrito é só um escrito.

O fim da arte é doar somente.
Não são os louros nem as loas.
Constrange a nós, pobres pessoas,
Estar na boca de toda a gente.

Cumpre viver sem impostura.
Viver até os últimos passos.
Aprender a amar os espaços
E a ouvir o som da voz futura.

Convém deixar brancos à beira
Não do papel, mas do destino,
E nesses vãos deixar inscritos
Capítulos da vida inteira.

Apagar-se no anonimato,
Ocultando nossa passagem
Pela vida, como à paisagem
Oculta a nuvem com recato.

Alguns seguirão, passo a passo,
As pegadas do teu passar,
Porém não deves separar
Teu sucesso de teu fracasso.

Nâo deves renunciar a um mín-
Imo pedaço do teu ser,
Só estar vivo e permanecer
Vivo, e viver até o fim.

Boris Pasternak

Tradução: Augusto de Campos

In: CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.103-104.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Poema de Catulo

38


Malest, Cornifici, tuo Catullo,
malest, me hercule, et laboriosi,
et magis magis in dies et horas,
quem tu, quod minimum facilimumque est,
qua solatus es allocutione?
Irascor tibi. Sic meos amores?
Paulum quid lubet allocutionis,
maestius lacrimis Simonideis.



38

Vai mal, Cornifício, o teu Catulo
vai mal e padece demais, muito
mais, a cada dia, a cada hora.
E tu - se era nuga, se era nada -
que consolo deste, que palavras?
Sinto ódio. Assim, és meus amores?
Só poucas palavras, certas, mais
tristes que o lamento de Simônides.

Catulo

Tradução de João Ângelo Oliva Neto

In: O livro de Catulo. São Paulo: Edusp, 1996, p. 93.

Malest cornifici tuo catullo

Estou feliz, Kerouac, seu louco Allen
finalmente conseguiu: achou um cara novo
e minha imagem de um garoto eterno
passeia pelas ruas de San Francisco,
lindo, e me encontra nas cafeterias
e me ama. Ah, não pense que estou maluco.
Você está zangado comigo. Pelos meus amantes?
É duro comer merda, sem ter visões;
quando eles me olham, para mim é o Paraíso.

Allen Ginsberg
Tradução: Claudio Willer

GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1984, p. 158.

Malest Cornifici Tuo Catullo

I'm happy, Kerouac, your madman Allen's
finally made it: discovered a new young cat,
and my imaination of an eternal boy
walks on the streets of San Francisco,
handsome, and meets me in cafeterias
and loves me. Ah don't think I'm sickening.
You're angry aat me. for all of my lovers?
It's hard to eat shit, without having visions;
when they have eyes for me it's like Heaven.

San Francisco, 1955

Allen Ginsberg

GINSBERG,Allen. Collected Poems.1947-1980. London: Penguin Books, 1987, p. 123.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Fazendo chover no seu piquenique

sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é meu forte,
meu amor?

Paulo Leminski


LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.38.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O ANO PASSADO

O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.

Carlos Drummond de Andrade

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 1249.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Definição de Poesia

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, a folha sob o granito.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazes para o jardim uma estrela
Nas palmas úmidas,tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

Boris Pasternak

1917

Tradução de Haroldo de Campos

CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris. Poesia Russa Moderna. Nova Antologia. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Vers de circonstance

A pessoa que mais amo
é feita desse mirante,
dessa época do ano,
do perto desse distante.

E o oceano e as pedras
cabem no vinco de horror
que é sua falta em meu rosto,
Tróia no rosto de Heitor.

Carlito Azevedo

AZEVEDO, Carlito. Sublunar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. p. 94.

A terra, em transe, treme

As terras potiguares em transe tremem. O que faz minha queridíssima amiga Marília lembrar dos versos do maluco beleza. Ei-los:

Buliram muito com o planeta
E o planeta como um cachorro eu vejo
Se ele já não aguenta mais as pulgas
Se livra delas num sacolejo

Raul Seixas

As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Fragmento de memórias

"Vê lá se D.Lourença admitia negro calçado... Tampouco usando jóias e cheiros que nem a sinhá. Mas que importava? 'Brinco-de-princesa' não é bicha? 'Esporinha' não faz pulseira? 'Lágrima-de-nossa-senhora', colar e 'Sempre-viva', coroa? Além dessas gemas vivas, as morenas tinham banha de porco para amansar o pixaim. Para amainar suas ondas, óleo de babosa. Para fazê-lo brilhar, gosma de quiabo. E tinham a farmacopeia doméstica cheia dos preparos que, além de curarem o corpo, tinham serventia de perfume. As mulatas recendiam a infuso de alecrim, azeite de funcho, gordura de alfazema, banho de alfavaca, óleo de manjericão, chá de congossa, a cozimento de manjerona, a loção de tomilho... Tinham ervas de cheiro para esmagar nas mãos. Capim-cheiroso para esconder no decote. E tinham os supremos, os profundos sovacos de onde saíam as espirais do xexéu que faziam tremer as narinas dos machos da casa. Dos negros do cascalho, dos de dentro, dos feitores, do Sinhô, dos meninos. Essa proximidade de fogo e pólvora..."
Pedro Nava

NAVA, Pedro. Baú de Ossos. Memórias I. 7 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 181.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A cidade e os símbolos

Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles. Se descrevo Olívia, cidade rica de mercadorias e de lucros, o único modo de representar a sua prosperidade é falar dos palácios de filigranas com almofadas franjadas nos parapeitos dos bífores, uma girândola d'água num pátio protegido por uma grade rega o gramado em que um pavão branco abre a cauda em leque. Mas, a partir desse discurso, é fácil compreender que Oblívia é envolta por uma nuvem de fuligem e gordura que gruda na parede das casas; que, na aglomeração das ruas, os guinchos manobram comprimindo os pedestres contra os muros. Se devo descrever a operosidade dos habitantes, falo das selarias com cheiro de couro, das mulheres que tagarelam enquanto entrelaçam tapetes de ráfia, dos canais suspensos cujas cascatas movem as pás dos moinhos: mas a imagem que essas palavras evocam na sua iluminada consciência é o movimento que leva o mandril até os dentes da engrenagem repetido por milhares de mãos milhares de vezes nos tempos previstos para cada turno. Se devo explicar como o espírito de Olívia tende para uma vida livre e um alto grau de civilização, falarei da mulheres que navegam de noite cantando em canoas iluminadas entre as margens de um estuário verde; mas isso serve apenas para recordar que, nos subúrbios em que homens e mulheres desembarcam todas as noites como fileiras de sonâmbulos , sempre existe quem começa a gargalhar na escuridão, dá vazão às piadas e aos sarcasmos.
Pode ser que isto você não saiba: que para falar de Olívia eu não poderia fazer outro discurso.Se de fato existisse uma Olívia de bífores e pavões, de seleiros e tecelãs de tapetes e canoas e estuários, seria um mero buraco negro de moscas, e para descrevê-la eu teria de utilizar as metáforas da fuligem, dos chiados de rodas, dos movimentos repetidos, dos sarcasmos. A mentira não está no discurso, mas nas coisas.
Italo Calvino

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis.São Paulo: Companhia das Letras,1997. P. 60