quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A cidade e os símbolos

Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles. Se descrevo Olívia, cidade rica de mercadorias e de lucros, o único modo de representar a sua prosperidade é falar dos palácios de filigranas com almofadas franjadas nos parapeitos dos bífores, uma girândola d'água num pátio protegido por uma grade rega o gramado em que um pavão branco abre a cauda em leque. Mas, a partir desse discurso, é fácil compreender que Oblívia é envolta por uma nuvem de fuligem e gordura que gruda na parede das casas; que, na aglomeração das ruas, os guinchos manobram comprimindo os pedestres contra os muros. Se devo descrever a operosidade dos habitantes, falo das selarias com cheiro de couro, das mulheres que tagarelam enquanto entrelaçam tapetes de ráfia, dos canais suspensos cujas cascatas movem as pás dos moinhos: mas a imagem que essas palavras evocam na sua iluminada consciência é o movimento que leva o mandril até os dentes da engrenagem repetido por milhares de mãos milhares de vezes nos tempos previstos para cada turno. Se devo explicar como o espírito de Olívia tende para uma vida livre e um alto grau de civilização, falarei da mulheres que navegam de noite cantando em canoas iluminadas entre as margens de um estuário verde; mas isso serve apenas para recordar que, nos subúrbios em que homens e mulheres desembarcam todas as noites como fileiras de sonâmbulos , sempre existe quem começa a gargalhar na escuridão, dá vazão às piadas e aos sarcasmos.
Pode ser que isto você não saiba: que para falar de Olívia eu não poderia fazer outro discurso.Se de fato existisse uma Olívia de bífores e pavões, de seleiros e tecelãs de tapetes e canoas e estuários, seria um mero buraco negro de moscas, e para descrevê-la eu teria de utilizar as metáforas da fuligem, dos chiados de rodas, dos movimentos repetidos, dos sarcasmos. A mentira não está no discurso, mas nas coisas.
Italo Calvino

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis.São Paulo: Companhia das Letras,1997. P. 60

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