sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Exercício de leitura

BREVE ANOTAÇÃO SOBRE UM ANJO TERRÍVEL
Por João Batista de Morais Neto


Foi através da revista Singular & Plural (nº 1, 1978), que tomei conhecimento, ou melhor, me aproximei da poesia intrigante do paulista Roberto Piva. Seu texto poderosamente anárquico ali se insurgia contro todo o bom-mocismo da época, e já era assim desde a década de 60. E contra toda e qualquer moral repressiva, ele gritava: “Nestes dias em que meus únicos companheiros foram a música de Mautner & algum garoto triste conquistado de madrugada em alguma esquina da solidão, eu sei que foram vocês que exilaram Gregório de Matos, enforcaram Essenine, apertaram o revólver musical de René Crevel, internaram Artaud, o Momo, no manicômio”.
E isso já era o bastante para afirmar a sua irreverência crítica, sua astúcia e guerrilha poética. Pouco tempo depois, chega às minhas mãos o volume 26 Poetas Hoje, a famosa antologia de Heloísa Buarque de Hollanda. Para quem queria conhecer melhor uma obra tão desbragadamente curiosa e importante, esse livro apresentava uma boa reunião de poemas pivianos. É interessante notar que esse material, em sua maioria, é já uma produção do início dos anos 60, ao contrário dos outros poetas ali incluídos.
A poesia desse maldito declarado é influenciada pela leitura de nomes importantíssimos, desde representantes do Expressionismo alemão, do Surrealismo, da Semana de 22, das poesia beat norte-americana. Seus textos entremeados de citações remetem-nos a esses referentes todos, de forma sempre fragmentada, e que, por tal razão, causa-nos um estranhamento poético que não deixa de ter relação com o seu próprio temperamento rebelde.
O texto de Piva é agressivo e anarquicamente erudito. Paradoxo? Ou será que um “marginal” não pode estar muito bem informado quanto ao melhor da literatura do planeta? Podemos dizer que a sua poesia ainda é uma arte do signficado, se quisermos levar em consideração questões formalistas. Mas nem tudo. Os seus textos longos passam-nos um conteúdo caústico. Mas esse discurso, por ser fragmentado, embaralha a sintaxe, desbundando-a (considerem a expressão!).
Em seu primeiro livro, Paranóia (1963), há versos assim: “Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci/... onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam a descarga sobre o mundo/... onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas”. Trata-se, é claro, de uma poesia que saúda o delírio em detrimento da razão constituída. E ele mesmo confessa no prefácio ao seu livro 20 Poemas com Brócolis: “´O poeta faz-se vidente mediante um longo, imenso e sistemático desregramento de todos os sentidos’. Assim Rimbaud definia a passagem da Poesia para a Vidência. Tendo essa afirmação em mente, o leitor deve entrar neste livro para percorrer as veredas do Sonho & da Paixão através das quais chegue a reunir estes estilhaços de visões”. Mais uma vez, estamos diante de um caso em que vida e obra são inseparáveis. Diz Piva a título de teoria e prática de sua obra: “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”.
Essa poesia, que é uma celebração orgiástica, feita de imagens delirantes e de uma modernidade, por que não dizer, originalíssima, é também um convite ao sonho, à libertação do tédio alienante do cotidiano capitalista. Em seu Pornosamba para o Marquês de Sade, ele escreve: “Esta homenagem coincide com a deterioração da Bastilha Sul-Americana minada pela crise de corações & balangandãs econômicos onde se mata de tédio o poeta & de fome o camponês”. O poeta e crítico Régis Bonvicino é feliz quando afirma que “o boêmio Piva não pode, entretanto, ser acusado de alienado. Nem burgueses nem operários compreendem, como diz um dos versos deste poeta, que ´têm poemas que abrem brechas na realidade’”.
Feito um anjo terrível, rilkeano, ele canta tudo isso, essa santa marginalidade, como que evocando São Genet, com sua linguagem tipo uma lâmina brilhante e bem afiada, cheia de “imagens violentas”. Piva surge e se insurge entre nós como um dos melhores poetas brasileiros dos últimos anos. Pois ele sabe que a utopia, na qual acredita, é o único lugar habitável pelo poeta. Qual Pasárgada. Em sua revolta, atentando para o seu mais significativo modelo, ele revela-se “contra tudo/por Lautréamont” e assim pinta e borda a ironia de sua linguagem. Piva, o enfant terrible, o “menino impossível” de Jorge de Lima. Falar sobre ele e sua obra é tarefa que nos obriga a exigirmos nossa cota de ócio, para que possamos lê-lo e descobri-lo em trabalho onírico, que reclama uma realidade sempre nova, reinventada, em que a poesia ligada à vida, exige prazer e liberdade.

IN: Sol Que Faltava, ano I, nº 2, Natal, out/87.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O PHÁRMAKON PLATÔNICO


O nosso interesse é o de discutir aqui alguns problemas que o filósofo Jacques Derrida propõe, com base na leitura da obra de Platão, o filósofo grego. O nosso enfoque se deterá na leitura de A República, principalmente os livros I, II e III, a fim de relacionar a ideia do phármakon como metáfora que incidirá sobre a possível condenação do poeta. O conceito de escritura, que emerge da discussão de Platão em torno da República, como um fundamento para a formação da sociedade, consiste num tema privilegiado para a filosofia contemporânea de Derrida, quanto a sua idéia de desconstrução. Trata-se da escritura como phármakon, ou seja, uma idéia platônica que é marcada insistentemente pela ambigüidade. Assim, a escritura-phármakon é a verdade e a mentira, o veneno e o remédio, aquilo que deve ser lido da produção dos poetas e o que deles deve ser censurado. Desde já, a discussão incita-nos a citar Derrida (1991, p. 11):

Somente uma leitura cega ou grosseira pôde, com efeito, deixar correr o boato de que Platão condenara simplesmente a atividade do escritor. Nada aqui está isolado, e o Fedro procura também, na sua escritura, salvar – o que é também perder – a escritura como o melhor, o mais nobre jogo.


Muito embora a citação remeta ao Fedro, a idéia se repete como elemento importante nos diálogos travados em A República. Esse jogo, que é a escritura, marcado pela ambivalência, como um dispositivo que salva e, concomitantemente, também perde, responde ou corresponde á idéia do phármakon, na medida em que ela suscita os diversos significados de remédio, veneno, droga, filtro, por exemplo.
A ameaça configurada pelo phármakon constitui um elemento central n’A República, pois, ao envolver a noção de escritura platônica, partindo de uma série de oposições que formam o arcabouço da metafísica, esse elemento traz a inquietante faceta da ambigüidade. Para Derrida, em Platão, “a palavra phármakon é tomada numa cadeia de significações. O jogo dessa cadeia parece sistemático. Mas o sistema não é aqui, simplesmente, aquele das intenções do autor conhecido sob o nome de Platão.” (DERRIDA, 1991, p. 43)
Assim, Derrida acredita na considerável dificuldade de estabelecer uma provável reconstituição do sistema textual de Platão. Conforme o filósofo francês, a palavra phármakon é a mais adequada para “atar todos os fios da correspondência”. A dificuldade de se traduzir os termos do discurso platônico se opera nessa reconstituição, dada a problemática ambigüidade que é difícil de ser recuperada pelo tradutor. Então, phármakon como remédio “torna explícita a racionalidade transparente da ciência, da técnica e da causalidade terapêutica”, enquanto Platão, por outro lado, também apresenta a escritura como suspeita.
Os mitos egípcios são necessários ao discurso de Platão para desenvolver sua argumentação a respeito da escritura. Dessa forma, Theuth, Thot, Hermes etc. atuam como referências fundamentais a fim de compreender suas idéias. Thot, inclusive, surge no texto no texto platônico como deus da escritura. Questiona Derrida: “Quais são os traços pertinentes para quem tenta reconstituir a semelhança estrutural entre a figura platônica e outras figuras mitológicas da origem da escritura?” (DERRIDA, 1991, p. 32) No desenvolvimento dessas relações, Thot-Ra, a escritura surge como uma suplemento da fala.
No texto de A República (Livro III), Platão, por meio da voz de Sócrates, diz: “... a verdade deve sobrepor-se a tudo. Porque, se não nos enganamos quando dissemos que a mentira é inútil aos deuses, mas útil aos homens sob a forma de remédio, claro é que esse uso deve ser confiado somente aos médicos e não a toda gente.” (PLATÃO, 2001, p. 95) Desse modo, percebe-se como Platão, ao formular a sua noção de sociedade, procura, por meio do diálogo, tendo à frente figura de Sócrates, uma persona, estabelecer normas para esse Estado. Sua palavra é contra os poetas, escritores, que nos infundem medo da morte. Isso representa um julgamento ou censura do texto poético, a escritura, que não é adequado ao projeto de sociedade platônica. O phármakon (remédio e escritura) não pode se contaminar com a linguagem imitativa. Para o bem da república, os poetas (Platão cita Homero) devem ser banidos, censurados. Mas aí temos um problema que vem à tona explicitamente: a relação ambígua que se dá por meio das oposições que constituem o pensamento.
Considerando essas observações Santos (2001, p. 80) propõe-nos:

Em Platão há uma ambigüidade que influenciará todo o mundo ocidental, pois há uma clara repulsa à poesia e aos poetas, mas uma tentativa de construir um saber racional sem, no entanto, romper totalmente com a poesia e com os mitos que nela são produzidos e até reproduzidos.

Assim, o Logos excluiria o discurso da sensibilidade poética, uma vez que nele se encontraram formas não aceitáveis de exemplos para a educação dos jovens. Nesse caso, a ameaça se faz pelo discurso poético, uma escritura essencialmente ambígua, cujos conteúdos que tecem o objeto literário comprometem o sentido moral da república. Por isso, trata-se a escritura de uma droga suspeita. Em vez de remédio, surge uma escritura suspeita, capaz de intervir, de forma negativa, na formação do Estado. Dessa maneira, a idéia que fica no discurso platônico é a de uma escritura como proibição, o texto literário.
Já no início da conversa, no Livro III, afirma Sócrates: “Importa, pois, vigiar sobre o que contam estas fábulas e recomendar-lhes que convertam em elogios todo o mal que ordinariamente dizem do inferno. Porque essas narrativas nem são verdadeiras nem tendem a inspirar confiança aos guerreiros.” (PLATÃO, p. 92) A insensatez configura-se como a marca da poesia, contrariando a razão platônica. Os heróis das epopéias não podiam ser fracos, nem darem sinal de desequilíbrio nenhum, a hybris seria indesejável, pois o que se fazia urgente e necessário para que a emergência da república era a temperança. Assim, condenava-se a fraqueza, o riso, o medo e tudo que se manifestasse nas narrativas homéricas.
A hegemonia do discurso da verdade como representação do Logos tornaria inviável o discurso literário. Dessa forma, a droga só é necessária como elemento positivo, como verdade, como algo útil. Então Sócrates, Adimanto e Glauco discutem a definição da matéria do discurso, tendo Sócrates como voz primordial. Vejamos:

Assim, pois, se viesse ter ao nosso Estado um desses homens peritos na arte de tudo imitar e de assumir formas diferentes, com o fito de se fazer admirar por si e por seus feitos, certo o acolheríamos como a um ser divino, maravilhoso e arrebatador, mas do mesmo passo, lhe diríamos que nosso Estado não se fundou para conter figuras de tão raro mérito, nem nos era lícito abrigá-las. E com isso o despediríamos para outra sociedade, depois de lhe haver derramado perfumes sobre a cabeça e de o ter coberto de faixas. Preferiríamos um poeta e fabulista menos gracioso, porém mais austero, mais útil, que imitasse o homem de bem e seguisse escrupulosamente as regras que havemos prescrito de começo, ao traçar o plano da educação de nossos guerreiros. (PLATÃO, 2001, p. 107)

Nessa fala de Sócrates já se percebe, não só a sua intolerância, mas o modelo que deve ser imposto à república para que o Estado funcione com perfeição, sem o risco da contaminação da desmedida. O poeta precisa estar de acordo com as normas sociais da república, já que o seu “delírio” não pode contaminar os jovens. Sócrates parece o rei, o pai da fala. O jogo da escritura produzido no círculo socrático, no qual opera o phármakon, implica esse conflito de ambivalências em que os sentidos se dão num jogo muitas vezes contraditório. E aí nesse círculo tanto o sofista quanto o poeta, no tocante à matéria do discurso, colocam-se como inimigos da república, afeitos à imitação e à aparência. Fica, então, sendo o logos como uma phármakon, cuja eficácia serve aos propósitos da verdade platônica.

Referências

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.
PAVIANI, Jayme. Platão e A República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Passo-a-passo)
PLATÃO. A República. Bauru: Edipro, 2001. (Série Clássicos)
SANTOS, Ivanaldo Oliveira dos. A função do poeta n’A República de Platão. In: Odisséia, nº 09, vol. 7, 2001, p. 79-84, UFRN.

poema

FRUTA-PÃO

Para Leo Ventura

Minha madeleine
É a memória dessa fruta
Nas beiras litoral
Entre os coqueiros e a brisa
O cheiro de sol na areia
Os movimentos livres da infância
Os agitos soltos da juventude
O amor ancorado na pulsação quieta
A poesia inscrita no sabor

João Batista de Morais Neto

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Craquinho

Eu tava três dias fumando horrores. Sem comer. Sem dormir.Só queimando a pedra. Você para, a fissura te pega. Já se perde numa nóia de veneno.
Não é como outra droga, não. O craque. Cê não consegue largar. Quer mais um. Mais um. E mais um.
É diferente porque ele você ama.
Só dez segundinhos. Fatal. Te bate no pulmão. O bruto soco na cabeça. E o mágico tuimmm!
Na pedra, sabe? Tem um espírito vivo. Daí o craquinho fala direto comigo:
- Vai, Edu. Vai nessa, mermão!
Cê fica o tal. Olho de vidro, o polegar chamuscado, acelero alto. Mais força e poder. O pico de zoar no paraíso.
E já no inferno. Isso aí, bacana. O teu inferno sem volta.
Fatal.

Dalton Trevisan

TREVISAN, Dalton.Duzentos ladrões. Porto Alegre:L&PM, 2008.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

do desejo

ETC.
Caetano Veloso



Estou sozinho, estou triste etc.
Quem virá com a nova brisa que penetra
Pelas frestas do meu ninho
Quem insiste em anunciar-se no desejo
Quem tanto não vejo ainda
Quem, pessoa secreta
Vem, te chamo
Vem etc.

© Editora Gapa

domingo, 22 de novembro de 2009

Um poema de Marize

Estrangeira

Abriga-me em suas coxas
pois perdi a rota.
Por erro, talvez.
Raro destino, quem sabe.

Fui além de mim.

Afastei-me de casa.
Confundi-me com outras.
Surpreendi-me.

Os fios que teci na sua escuridão
tornaram-me seta e luz.

Mais estrangeira do que sempre fui.

Marize Castro


CASTRO, Marize. Lábios espelhos. Natal:Una,2009.

eros segundo sontag

Na América, os temas interligados do erotismo e da liberdade começam agora a ser tratados seriamente. A maioria das pessoas ainda se sente exigida a travar a velha batalha contra as inibições e a pudicícia, partindo do pressuposto de que a sexualidade é algo que necessita simplesmente se expressar de modo mais livre. Um país no qual a justificativa de um livro tão reacionário do ponto de vista sexual como O Amante de Lady Chatterley consitui uma questão importante, encontra-se claramente num estágio muito elementar da maturidade sexual. As ideias de Lawrence sobre sexo são gravemente prejudicadas por seu romantismo de classe, por sua mística da distinção do macho, por sua insistência puritana na sexualidade genital; e muitos dos seus recentes defensores no campo da literatura admitiram isto. No entanto, Lawrence deve ser defendido, principalmente quando muitos que o repudiam se retiraram para uma posição ainda mais reacionária do que a sua, considerando o sexo um acessório prosaico do amor. A verdade é que o amor é mais sexual, mais corporal do que Lawrence jamais imaginou. E as implicações revolucionárias da sexualidade contemporâneas estão longe de ser completamente compreendidas.
Susan Sontag - 1961

In: SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.

poema

falta água e falta
água tens e não tens
os surfistas de são miguel paulista quebram ondas
nos tetos dos trens

Amador Ribeiro Neto

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Do excepcional

"Os acontecimentos excepcionais devem encontrar ressonância em nós para nos marcar profundamente." Gaston Bachelard

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Poema

A Carlos Drummond de Andrade

Há muitas sombras no mundo
Elas ventam nas nuvens
e no ar
brilham solitárias como topázio -
gotas de luz apagadas

Os astros ventam
A sombra é o vento dos astros

No fundo das águas prisioneiras
de lagos e açudes
há um vento de águas -
sombras

No mar
refratam-se submersas
viageiras
em meio a florestas de alga -
sombra das sombras emersas

São feitas - as sombras - de ar
escuro
Lembram o tudo e o nada

O voo das sombras
gira em torno de uma coluna
sonora, o poema -
luz de dentro

Fora

Francisco Alvim

IN: Elefante.São Paulo: Companhia das Letras, 2000,p.70-71.