quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O PHÁRMAKON PLATÔNICO


O nosso interesse é o de discutir aqui alguns problemas que o filósofo Jacques Derrida propõe, com base na leitura da obra de Platão, o filósofo grego. O nosso enfoque se deterá na leitura de A República, principalmente os livros I, II e III, a fim de relacionar a ideia do phármakon como metáfora que incidirá sobre a possível condenação do poeta. O conceito de escritura, que emerge da discussão de Platão em torno da República, como um fundamento para a formação da sociedade, consiste num tema privilegiado para a filosofia contemporânea de Derrida, quanto a sua idéia de desconstrução. Trata-se da escritura como phármakon, ou seja, uma idéia platônica que é marcada insistentemente pela ambigüidade. Assim, a escritura-phármakon é a verdade e a mentira, o veneno e o remédio, aquilo que deve ser lido da produção dos poetas e o que deles deve ser censurado. Desde já, a discussão incita-nos a citar Derrida (1991, p. 11):

Somente uma leitura cega ou grosseira pôde, com efeito, deixar correr o boato de que Platão condenara simplesmente a atividade do escritor. Nada aqui está isolado, e o Fedro procura também, na sua escritura, salvar – o que é também perder – a escritura como o melhor, o mais nobre jogo.


Muito embora a citação remeta ao Fedro, a idéia se repete como elemento importante nos diálogos travados em A República. Esse jogo, que é a escritura, marcado pela ambivalência, como um dispositivo que salva e, concomitantemente, também perde, responde ou corresponde á idéia do phármakon, na medida em que ela suscita os diversos significados de remédio, veneno, droga, filtro, por exemplo.
A ameaça configurada pelo phármakon constitui um elemento central n’A República, pois, ao envolver a noção de escritura platônica, partindo de uma série de oposições que formam o arcabouço da metafísica, esse elemento traz a inquietante faceta da ambigüidade. Para Derrida, em Platão, “a palavra phármakon é tomada numa cadeia de significações. O jogo dessa cadeia parece sistemático. Mas o sistema não é aqui, simplesmente, aquele das intenções do autor conhecido sob o nome de Platão.” (DERRIDA, 1991, p. 43)
Assim, Derrida acredita na considerável dificuldade de estabelecer uma provável reconstituição do sistema textual de Platão. Conforme o filósofo francês, a palavra phármakon é a mais adequada para “atar todos os fios da correspondência”. A dificuldade de se traduzir os termos do discurso platônico se opera nessa reconstituição, dada a problemática ambigüidade que é difícil de ser recuperada pelo tradutor. Então, phármakon como remédio “torna explícita a racionalidade transparente da ciência, da técnica e da causalidade terapêutica”, enquanto Platão, por outro lado, também apresenta a escritura como suspeita.
Os mitos egípcios são necessários ao discurso de Platão para desenvolver sua argumentação a respeito da escritura. Dessa forma, Theuth, Thot, Hermes etc. atuam como referências fundamentais a fim de compreender suas idéias. Thot, inclusive, surge no texto no texto platônico como deus da escritura. Questiona Derrida: “Quais são os traços pertinentes para quem tenta reconstituir a semelhança estrutural entre a figura platônica e outras figuras mitológicas da origem da escritura?” (DERRIDA, 1991, p. 32) No desenvolvimento dessas relações, Thot-Ra, a escritura surge como uma suplemento da fala.
No texto de A República (Livro III), Platão, por meio da voz de Sócrates, diz: “... a verdade deve sobrepor-se a tudo. Porque, se não nos enganamos quando dissemos que a mentira é inútil aos deuses, mas útil aos homens sob a forma de remédio, claro é que esse uso deve ser confiado somente aos médicos e não a toda gente.” (PLATÃO, 2001, p. 95) Desse modo, percebe-se como Platão, ao formular a sua noção de sociedade, procura, por meio do diálogo, tendo à frente figura de Sócrates, uma persona, estabelecer normas para esse Estado. Sua palavra é contra os poetas, escritores, que nos infundem medo da morte. Isso representa um julgamento ou censura do texto poético, a escritura, que não é adequado ao projeto de sociedade platônica. O phármakon (remédio e escritura) não pode se contaminar com a linguagem imitativa. Para o bem da república, os poetas (Platão cita Homero) devem ser banidos, censurados. Mas aí temos um problema que vem à tona explicitamente: a relação ambígua que se dá por meio das oposições que constituem o pensamento.
Considerando essas observações Santos (2001, p. 80) propõe-nos:

Em Platão há uma ambigüidade que influenciará todo o mundo ocidental, pois há uma clara repulsa à poesia e aos poetas, mas uma tentativa de construir um saber racional sem, no entanto, romper totalmente com a poesia e com os mitos que nela são produzidos e até reproduzidos.

Assim, o Logos excluiria o discurso da sensibilidade poética, uma vez que nele se encontraram formas não aceitáveis de exemplos para a educação dos jovens. Nesse caso, a ameaça se faz pelo discurso poético, uma escritura essencialmente ambígua, cujos conteúdos que tecem o objeto literário comprometem o sentido moral da república. Por isso, trata-se a escritura de uma droga suspeita. Em vez de remédio, surge uma escritura suspeita, capaz de intervir, de forma negativa, na formação do Estado. Dessa maneira, a idéia que fica no discurso platônico é a de uma escritura como proibição, o texto literário.
Já no início da conversa, no Livro III, afirma Sócrates: “Importa, pois, vigiar sobre o que contam estas fábulas e recomendar-lhes que convertam em elogios todo o mal que ordinariamente dizem do inferno. Porque essas narrativas nem são verdadeiras nem tendem a inspirar confiança aos guerreiros.” (PLATÃO, p. 92) A insensatez configura-se como a marca da poesia, contrariando a razão platônica. Os heróis das epopéias não podiam ser fracos, nem darem sinal de desequilíbrio nenhum, a hybris seria indesejável, pois o que se fazia urgente e necessário para que a emergência da república era a temperança. Assim, condenava-se a fraqueza, o riso, o medo e tudo que se manifestasse nas narrativas homéricas.
A hegemonia do discurso da verdade como representação do Logos tornaria inviável o discurso literário. Dessa forma, a droga só é necessária como elemento positivo, como verdade, como algo útil. Então Sócrates, Adimanto e Glauco discutem a definição da matéria do discurso, tendo Sócrates como voz primordial. Vejamos:

Assim, pois, se viesse ter ao nosso Estado um desses homens peritos na arte de tudo imitar e de assumir formas diferentes, com o fito de se fazer admirar por si e por seus feitos, certo o acolheríamos como a um ser divino, maravilhoso e arrebatador, mas do mesmo passo, lhe diríamos que nosso Estado não se fundou para conter figuras de tão raro mérito, nem nos era lícito abrigá-las. E com isso o despediríamos para outra sociedade, depois de lhe haver derramado perfumes sobre a cabeça e de o ter coberto de faixas. Preferiríamos um poeta e fabulista menos gracioso, porém mais austero, mais útil, que imitasse o homem de bem e seguisse escrupulosamente as regras que havemos prescrito de começo, ao traçar o plano da educação de nossos guerreiros. (PLATÃO, 2001, p. 107)

Nessa fala de Sócrates já se percebe, não só a sua intolerância, mas o modelo que deve ser imposto à república para que o Estado funcione com perfeição, sem o risco da contaminação da desmedida. O poeta precisa estar de acordo com as normas sociais da república, já que o seu “delírio” não pode contaminar os jovens. Sócrates parece o rei, o pai da fala. O jogo da escritura produzido no círculo socrático, no qual opera o phármakon, implica esse conflito de ambivalências em que os sentidos se dão num jogo muitas vezes contraditório. E aí nesse círculo tanto o sofista quanto o poeta, no tocante à matéria do discurso, colocam-se como inimigos da república, afeitos à imitação e à aparência. Fica, então, sendo o logos como uma phármakon, cuja eficácia serve aos propósitos da verdade platônica.

Referências

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.
PAVIANI, Jayme. Platão e A República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Passo-a-passo)
PLATÃO. A República. Bauru: Edipro, 2001. (Série Clássicos)
SANTOS, Ivanaldo Oliveira dos. A função do poeta n’A República de Platão. In: Odisséia, nº 09, vol. 7, 2001, p. 79-84, UFRN.

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