sexta-feira, 30 de abril de 2010

Raça

O padre Caldas
orangotango da Corte
entre a Arcádia e a rua
com a sua Viola de Lereno
faz irromper sua fúria branda

Cruz e Sousa
fascina-se pelas imagens brancas
e pela assepsia das formas
mas em seu emparedamento
afirma sua negra dor.

O mulato Lima
vivendo na fronteira
em que álcool, loucura e miséria
formaram um molotov de adversidades
detonou o mundo medíocre de sua época
sendo “pobre, mulato e livre”.

Gil
de refazenda e realce
da refavela ao poder
afirma seu brilho
de canto e discurso
a cintilação de palavra e gesto
em cores vivas.

Machado
Ah! O bruxo!
Esse sublimou.

João Batista de Morais Neto

quarta-feira, 28 de abril de 2010

DOS ONZE E DOIS POEMAS

Fina teia de aranha, tecem o verbo no céu
os ramos da Pensilvânia batidos pelo vento;
em seu desenho eu leio o ignoto.
Insular que matou a sede em oliveiras de luar
revolucionário, imigrante, sou de ofício
intérprete de sonhos. Examino os Magos van
van Eyck e Bosch e Breton e
Duchamp. Saúdo ateus budistas
do Colorado, anarquistas heréticos.
Festejo o solstício e aniversário
de qualquer Comuna. Cultuo, à sombra do monte Atos
e das pirâmides, Vênus Afrodite.
Perco-me na multidão, reencontro-me a mim mesmo
nas artérias de Babilônia
na palma do futuro.

Kálas


In: PAES, José Paulo (Org). Poesia Moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p.189.

terça-feira, 27 de abril de 2010

poema

UM CERTO SPLEEN TARDIO


Não dá pra disfarçar
A tristeza

A blusa amarela
A calça azul-marinho
O sapato novo luzindo

O passo de dança
Como um bailado de rua
Enquanto ainda há vento na cidade

Mas os edifícios crescem gigantes
Na construção da mimese das grandes metrópoles
Aumentando o calor da província
Sufocando os pulmões que eram tão puros

O spleen está na cara
A alma se vê por fora
Parece o absurdo da cidade
Tão bruta
Atropelando-se na confusão dos dias

Um flanêur periférico é como
Sempre um flanêur
Um passante deslocado na paisagem

João Batista de Morais Neto

quinta-feira, 22 de abril de 2010

poema

faz três semanas
espero
depois da novela
sem falta
um telefonema
de algum ponto
perdido
do país


ana cristina cesar

CESAR, Ana Cristina. Novas seletas. Organização, apresentação e notas de Armando Freitas Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p.53.

domingo, 18 de abril de 2010

O poeta e seus babilaques

Mascarado avanço

Ela desinfla o mal-estar
na civilização.
Ela prescinde da felicidade
dos bem-postos na vida.
Quanto mais na lida diária
o Tedium Vitae preside
tanto mais
eu e ela nos fundimos extáticos,
crentes da seita dos dervixes girantes.
Eu, com ansiosa solicitude,
agarro qualquer bóia
- destroço seja jóia -
e comando o lupanar do lumpensinato da ilusão.
E, ela, que papel cumpre?
Ela imprime descomunal animação
à falange
das minhas máscaras.

Waly Salomão

In: SALOMÃO, Waly. O mel do melhor. Rio de Janeiro: Rocco,2001, p. 107.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

BLEFE

pois esse é o mês bastardo, azinhavre
engole o que há de doce nos metais
silêncio embaça a pele dos diários
lençóis têm cor de áridos lençóis

existe azul, mas é um azul de asma
que a nitidez da tarde faz em cápsula
espelhos só devolvem olheira e pragas
um gesto que de fácil despedaça

catódica essa luminosidade
estranha o sol repele o sol. intacto
o tique que quedou meus dias gagos

a rima fica lívida nos lábios
e dor sem voz passeia o seu contágio
um gato eletrifica. arrisco maio.

Claudia Roquette-Pinto

IN: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Esses poetas. Uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998, p. 118.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

domingo, 11 de abril de 2010

Um poema de Paul Celan

À noite, quando o pêndulo do amor oscila
entre sempre e nunca,
tua palavra toca as luas do coração
e teu tempestuoso olho
azul alça o céu à terra.

De longe, do negrissonhado
bosque advém-nos o sopro,
e o perdido circula, grande como os esquemas do futuro.

O que agora sobe e desce
vale para o íntimo soterrado:
cego como o olhar que trocamos,
beija o tempo na boca.


CELAN, Paul. Poemas. Tradução de Flávio Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977, p.25.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

ESCOLHO

Parado

Na plataforma superior

Entre as pernas
no chão
as compras num plástico

Longe do verso perto da prosa
Sem ânimo algum
para as sortidas sempre -
enquanto duram -
venturosas da paixão

Longe tão longe
do humor da ironia
das polimorfas vozes
sibilinas
transtornadas no ouvido
da língua

Ali onde o chão é chão
as pernas, pernas
a coisa, coisa
e a palavras, nenhuma
Onde apenas se refrata
a ideia
de um pensamento exaurido
de movimento

Entre dois trajetos
dois portos
(duas lagunas)
duas doenças

Sublimes virtudes do acaso
por que não me tomais
por dentro
e me protegeis do frio de fora
da incessante, intolerável, fuga do enredo?
da escolha?

Francisco Alvim

ALVIM, Francisco. Elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.133-134.